Herminio Naddeo, sempre se destacou no mercado carioca e mineiro como um dos melhores homens de Criação de sua geração. Mas como dizia o saudoso ator Paulo Gracindo: “Talento é como cortiça, talento bóia!”
Herminio é um talentoso contista. Aí está, de sua autoria: “A Revolta dos Neurônios”.
Publicidade Vivida, com orgulho, publica este conto seu, o qual, no momento em que vivemos, vem bem a calhar. Espero que gostem!
“O psiquiatra custou a entender, porque o que ele contava é o que assassinos e bandidos costumam usar para justificar os atos. Agora, o cara dizer que todas as sinapses do cérebro dele estavam desligadas por causa de uma mulher, nunca tinha ouvido…
Ele disse que a mulher desligou todas as sinapses do cérebro cérebro dele e que os neurônios estão fazendo a maior confusão e os pensamentos se misturaram todos. Vem um e diz: “Deixa de ser bobo, tira essa mulher daqui de dentro”. Quase ao mesmo tempo outro fala: “Poderia ter volta, quem sabe tudo ficasse igual ao que era”. Lá perto do cerebelo um com sotaque estrangeiro se anima, “ma que? Não está mais pensando em ir para a Itália, cazzo?“
O psiquiatra pergunta o que ele sente fisicamente quando isso acontece. Suor, aflição, dor? Ele responde que ao mesmo tempo que dói, não dói. Diz e ri da vontade de chorar, que disfarça assoando o nariz num lenço azul. E começa a ouvir de novo a discussão dos neurônios: “O lençol da cama deve ser preto, combina mais com os cabelos louros e com o tom da pele dela”; “Deve estar na cama com o marido cretino”; “Ou com algum dos amantes do passado”; “Ou algum outro do presente”. E leva um empurrão de um neurônio mais forte cheio de eletricidade: “Pensa isso de novo que eu te desligo, te dou um choque”
Ele olha para o médico, olhos parados, em transe. Fica assim por minutos e de repente começa a falar, diz que aos poucos as vozes foram sumindo e ele viu a realidade diante dos olhos, porque seu telefone não toca mais, como não tocava antes. No celular não tem mais mensagem nenhuma. E sabe agora que não adianta esperar com aquela ansiedade que o tomava quando via a mulher online sem poder falar com ela.
Na sessão seguinte, estava com uma cara alegre, porque teve a surpresa de um e-mail… E a surpresa se repetiu outra vez. E mais outra… E ainda mais uma… E pronto, a ansiedade agora é para ver se chegou e-mail novo… Então o bando de vozes volta a discutir dentro da cabeça e ele mesmo imagina que é isso que os loucos dizem que acontece com eles quando cometem uma loucura.
“Deserto de Atacama, sujeito? onde fica isso? Você nem aguentaria ela na cama’’… “Cai na real, você já era…”… “Amor? Você não sabe mais nada disso”… “Espero ela largar o marido e a gente fica junto até eu morrer”… “Você acredita?”… “Cara mais linda ela tem em cima daquele corpo delicioso”… “Pousada de amigo em Arraial do Cabo? Que amigo é esse?” “Deixa de ser ciumento, tá parecendo o marido dela” … “Tomara que os filhos dela gostem de mim”… “Podemos ser grandes amigos”… “Esquece, cara, esquece”… “Como?”
As vozes falam, discutem, falam, confundem, falam e falam e falam sem parar. O médico quer dizer alguma coisa, mas ele não toma conhecimento. Levanta-se e caminha até a porta do consultório. Para, volta-se para o médico e recita um poema, diz que as vozes lhe contaram: “Nasci para ser seu inimigo ou seu amante, mas nunca um seu amigo ou seu irmão“.
Sai, fecha a porta com delicadeza, o médico ouve a sola grossa da sandália de couro dele arranhando o chão do corredor.
Ficou duas semanas sem aparecer. Quando voltou com a cara mais feliz do mundo, contou que tinha passado a manhã olhando fotos dela. Nem bem acabou de falar e a discussão recomeçou: “É um babaca, mesmo, vê uma bunda e fica desse jeito”… “Não, foi de olhar os olhos da bruxa”… “Feitiço não existe, trouxa”… “Io no credo in brujas… mas que las hai, las hai”… “Vai se enganar de novo”… “Não dá palpite, deixa ele se foder outra vez, quem sabe ele aprende”.
O psiquiatra ficou preocupado quando viu os olhos dele cheios d’água, lábios tremendo, rosto pálido todo branco. Tocou no joelho dele e isso o tirou do transe em que tinha entrado. E ele falou:
– Doutor, mande esses caras calarem a boca… Não consigo mais pensar o que fazer de minha vida. Eu penso uma coisa e eles dão suas opiniões. Se estou quieto, pensando em estar na praia, lá vem um me lembrando ela de maiô na piscina, mas mal vejo a fotografia e a imagem desvanece porque a briga lá dentro recomeça: “Olha que onda grande, rapaz, vai chegar aqui”… “Tira ela da cabeça”… “Mas pensa naquele corpinho debaixo de mim” … “Aquela boca deliciosa beijando meu corpo todo”… “Porto Real é perto de lá? pode dar uma fugida… ou ela foge e me encontra”… “Para, desliga os circuitos todos, tá na hora de se concentrar no trabalho”… “Desliga aí, desliga aí, ou eu entro em curto”.
Até o psiquiatra perde o rumo, quando não sabe quem está falando com ele, o paciente ou os neurônios dele? Ele entende o que o paciente diz. Mas quando são as vozes falando, aí complica. Principalmente quando começam a se comunicar fora da cabeça do paciente, tomando conta da cabeça mais próxima.
“Larga esse cara, doutor”… “É, sou eu falando aqui dentro, doutor”… “Agora o senhor entende o que seu paciente tá enfrentando”… “Vai fazer o quê, doutor?”
O médico balança a cabeça assustado. As vozes calam com o médico tentando se recuperar do susto. Pede licença e vai pegar água no bebedouro automático, oferece ao paciente. Ele aceita. Os dois brindam, encostando os copos, um olhando no olho do outro. E de repente ficam apavorados, quando percebem que as vozes de um estão conversando com as vozes do outro.
“Como é que vocês suportam esse cara?”… “O doutor sabe tudo não sabe é nada”… “Vocês têm razão… Venho me confessando pra ele e tem adiantado muito pouco”… “Ah, veio aqui para ver se o doutor nos tira de sua cabeça… “Só rindo mesmo”… “Pra que perder tempo com esse menino?”… “É caso perdido, dá alta e esquece dele”… “Escrever artigo sobre isso para revista de psiquiatria? hahaha”…
“Pior que a mulher continua dentro da cabeça”…
Agora é o médico que parece ter saído de um transe… Faz não com a cabeça várias vezes, sacode mesmo, segura a cabeça nas mãos, uma de cada lado do rosto… Sem entender nada, vê o paciente parecendo hipnotizado, os olhos distantes… Estala os dedos frente a esses olhos que não vêem nada e o rapaz volta ao mundo. O médico fala primeiro:
– Aconteceu com você também? Nossas cabeças conversaram mesmo? Ou estou ficando louco?
– Estou confuso, doutor… Que truque foi esse, entrar na minha cabeça, invadir meu cérebro?
– Não fui eu… Não entendi nada… Acho que estou pirado como você…
– Pirado, doutor… Eu venho aqui buscar solução para meus pesadelos e o senhor me chama de pirado? Pirado é o senhor… Adeus.
O rapaz vira as costas e sai, bate a porta com raiva.
O médico fica mudo. E as conversas recomeçam: “Que falta de profissionalismo”… “Tava pensando o quê?”… “O doutor não descobriu o que o cara precisava”… “Sei, não”… “Vê se fecha esse consultório”… “Não precisa tanto, tira uma férias”… “Só isso já vai resolver”… “Praia, que praia?… “Tem que ir pra roça”…
Ninguém entendeu o vídeo exibido no jornalismo da TV, um sujeito andando como um zumbi, nem percebendo que esbarrava nas pessoas, completamente fora de si. E o apresentador, tão surpreso como as pessoas em casa, lê o que está na sua frente para ser lido:
– Médico psiquiatra é levado para instituição psiquiátrica depois de chamada telefônica para o resgate dos bombeiros. Apresentava sinais de que estava perdido no espaço. Identificado pelos documentos na carteira, não soube dizer nada além de que as vozes estavam lá dentro, apontando a própria cabeça.”